CRESCENDO COM 0S “ITTIES”
Swami Niranjanananda Saraswati
Satsang na Bretanha, França, Julho de 2006.
Existem dois tipos de yoga. Um é o yoga clássico, no qual praticamos e avançamos em asana, pranayama, yama, niyama, pratyahara, dharana e outras práticas. O outro é o yoga de Swami Sivananda, que é yoga expressivo e seu tema principal é o serviço. Enquanto seguimos os objetivos do yoga clássico, o yoga continua sendo um processo para ser aperfeiçoado. Porém, se seguimos o yoga de Sivananda, então se converte em uma forma de vida. Quando nossa vida começa e expressar yoga, o yoga deixa de ser uma prática de uma hora que se realiza todos os dias e se transforma em uma atitude e uma consciência com as quais vivemos as 24 horas do dia. Nesta etapa, o yoga nos permite expressar maior criatividade e participação no mundo.
O resultado final do yoga não é isolar-nos do mundo, mas envolver-nos mais profundamente nos assuntos do mundo, conhecendo nosso lugar nele, nossas responsabilidades e a forma como podemos marcar uma diferença na vida de outras pessoas. Isto é o que Swami Sivananda chamou a “vida divina”. À medida que seguimos o yoga de Swami Sivananda, a natureza grosseira se transforma. À medida que nos tornamos mais satwicos, mais maduros em sabedoria e desenvolvemos uma compreensão maior, há uma identificação mais profunda com nosso meio e com o mundo. Deve ficar claro que o yoga não é um caminho de isolamento. Não podemos escapar para as montanhas para experimentar a consciência superior, temos que sair ao mundo para dar-nos conta da consciência superior. É a coisa de treinarmos a nós mesmos.
Formar-nos significa controlar melhor nossas respostas e reações, atitudes, convicções, criatividade e desempenho. Tal transformação de uma natureza condicionada a uma natureza florescente é a “vida divina”, que Swami Sivananda descreve.
Swami Sivananda disse tambémque podemos continuar com nossas práticas iogues de ásana, pranayama e mantra; entretanto, também devemos ser capazesde expressar o yoga em nosso meio normal, quando não estamos realizando as práticas. Para que isto ocorra, os conceitos do yoga devem estar arraigados em nossa vida. Depois de tudo, um computador somente funcionará de acordo com sua programação e software. Portanto, temos que substituir o software interno e atualizar a programação da nossa mente. Porém, onde encontrar este software? Onde encontrar um programa que nos permita mudar o desempenho de nosso computador? Esta possibilidade se vê nos dezoito“itties” de Swami Sivananda. Vamos ver o que são:
1. Serenidade
O primeiro “ity” é a serenidade, que é a primeira mudança no software. Já foi afirmado que a serenidade surge quando nos desprendemosde nossas reações mentais e emocionais. Porém também a vemos desde uma perspectiva diferente. Sabe-se que quando estamos serenos, estamos em paz conosco mesmos. Então surge a pregunta: porque nos alteramos? Porque não podemos mantera paz interior todo o tempo?
Alguém pode dizer que é a associação e a atração que se sente pelos objetos que alteram nossa serenidade, outros podem dizer que é o desejo e todos terão razões válidas para suas afirmações. A serenidade é como o corpo, alguns podem dizer que o corpo está feito de mãos, outros podem dizer que o corpo tem pernas e assim sucessivamente. Porém eles somente estão se referindo às parte do corpo. A totalidade do corpo se compõe de todas estas partes. Da mesma forma, a serenidade é a experiência de uma personalidade integral. Porém, a maioria de nós não tem uma personalidade integral e, portanto, não estamos serenos.
Identificamo-nos com uma ideia falsa de nós mesmos. É semelhante a apontar para nossa imagem no espelho e dizer “esse é eu”. Como pode essa pessoa ser nós? Não estamos dizendo “esse é meu reflexo”. Nós nos identificamos com essa imagem. Não nos vemos a nós mesmos, não vemos o eu real. Pensamos que a aparência é real. Embelezamos a aparência e quando nos vemos bem, nos sentimos bem. Nunca trabalhamos com o eu real, sempre trabalhamos com o eu imaginário.
Existem duas áreas de experiência: uma é a aparência e a outra é a realidade. Sempre nos identificamos e nos preocupamos com a aparência e não com a realidade. Quando existe obsessão com a aparência ou narcisismo, perde-se a serenidade. Esta obsessão pode tomar a forma de desejo, expectativa, fortaleza ou debilidade, dependendo de nossa resposta ante as situações.
A aparência e a realidade são satya. Porém existe uma diferença. Uma satya é real e a outra é a realidade aparente. Infelizmente nunca somos capazes de conectar-nos com a verdadeira satya. Os Yoga Sutras afirmam que nos sentimos atraídos ao prazer porque nos dá felicidade e repelimos a dor porque nos causa sofrimento. A atração é associação e aversão é dissociação. Em Sânscrito, são conhecidos como raga e dwesha. Enquanto existirem raga e dwesha, a atração e a aversão, estaremos presos na realidade aparente. A serenidade é encontrar a verdadeira realidade e não estar preso na realidade aparente e nas suas reações. Portanto, para viver a serenidade, devemos liberar-nos das respostas e reações mentais e emocionais.
Antes que Swami Satyananda fosse iniciado em sannyasa, perguntou a Swami Sivananda se suas responsabilidades e obrigaçõesmudariam depois de tomar a iniciação. Swami Sivananda respondeu-lhe que ele faria exatamente o que vinha fazendo e que a única mudança seria em sua atitude com relação ao seu desempenho.
Quando trabalhamos para nós mesmos há expectativa, desejo, necessidade; o êxito e o fracasso nos afetam. Porém quando dedicamos todas nossas ações ao guru ou a uma causa maior, o êxito e o fracasso não nos afetam para nada. A ansiedade gerada quando se trabalha para si mesmo desaparece. Libertamo-nos da influência das ações. Quando isto acontece, nos libertamos das respostas e reações emocionais e mentais, associadas com atitudes egoístas. Isso é serenidade.
À medida que nos separamos cada vez mais dos resultados e expectativas, nos identificamos mais com nossa natureza criativa, com a paz interior e alcançamos a serenidade.Damo-nos conta do real e não nos vemos presos na teia das aparências.
2. Regularidade
A regularidade é o segundo “ity” e um ponto importante para o praticante espiritual. Nos Yoga Sutras está escrito que somente através da prática regular e constante, tendo fé em nossa prática, podemos construir uma base sólida para nosso crescimento.
A regularidade é um indício de uma mente estável e positiva. Quando a mente é instável, somos irregulares. Quando a mente fica solta para que se comporte como um macaco, se estabelece a irregularidade. Porém quando a mente é animada para que se torne estável e tenha foco, produz-se a regularidade.
3. Ausência de vaidade
Estamos sempre procurando criar uma impressão. Nunca somos realmente naturais. Expressamos vaidade da forma mais simples até a mais complicada.
Existe uma história de um santo Sufi, Mulla Nasruddin. Uma vez ele participou de um concurso de arco. Deram a ele três flechas para atingir o alvo. Mulla tomou uma flecha, a ajustou, alinhou o corpo e, com uma atitude muito confiante, lançou a flecha. A flecha caiu muito além do objetivo. Mulla tomou a segunda flecha. Desta vez mediu o alvo com muito cuidado. A flecha caiu na metade antes da meta. Mulla tomou a terceira flecha, não mirou nem à esquerda nem à direita, não se preocupou com sua postura, simplesmente lançou a flecha. A flecha foi reta, acertando bem no alvo. Quando Mulla estava se indo com seu troféu, um de seus discípulos perguntou-lhe a razão particular de cada uma de suas ações. Mulla respondeu: “quando estava disparando a primeira flecha, eu estava demasiado confiante e pouco cuidadoso;quando uma pessoa é demasiadamente confiante, é fácil de errar. E o discípulo perguntou-lhe:” e a segunda vez? ”Mulla respondeu:” isso foi uma pessoa com pouca confiança. Quando há uma falha, perde a confiança, o medo aparece e, sob essa condição não pode dar os cem por cento de sua capacidade. “Não pode alcançar o que espera e pelo que está trabalhando, porque se freia.” O discípulo perguntou então: “E a terceira vez?” Mulla respondeu: “esse era realmente eu”.
Você pode ser realmente você? Se você puder ser realmente você, então terá superado suas vaidades. Entretanto,no momento em que você se projeta como uma pessoa segura ou insegura de si mesma, você está sujeito às vaidades. A humildade é o antídoto da vaidade. Se você puder ser humilde em todas as situações, então você superará a vaidade.
4. Sinceridade
A sinceridade é outro sadhana importante e uma atitude que deve ser cultivada. Pergunte a si mesmo: “sou sincero comigo mesmo?” Esta não é uma pergunta superficial. A sinceridade é pureza e inocência de coração. Quando o coração é puro e você é inocente, então a sinceridade se expressa naturalmente, porque a sinceridade é uma expressão do estado não condicionado da existência.
5. Simplicidade
A simplicidade é desfazer-se das pretensões desnecessárias e complicadas na vida e aprender a tornar-se descomplicado.
6. Veracidade
A veracidade é aderir à verdade. O que é a verdade tem que ser descoberto pelo próprio indivíduo e por si mesmo. Creio que na vida normal, a verdade é diplomacia. Não a diplomacia forçada ou política, mas a diplomacia que surge de saber que nossas palavras podem influir na mente de outra pessoa.
Uma vez existiu um rei que perguntou a um astrólogo o que o destino lhe preparava. O astrólogo olhou a certidão de nascimento do rei e disse: “sua família, seu clã e seu reino serão destruídos. Você morrerá sozinho.” O rei ficou furioso e mandou encarcerar o astrólogo. Chamou outro astrólogo que leu sua certidão de nascimento e disse: “meu rei, você terá uma vida longa, sobreviverá a seus amigos, família e filhos e a seu reino também”. “O rei o encheu de presentes”.
Ambos disseram o mesmo. Um disse sem rodeios e outro com diplomacia. Há um ditado em Sânscrito; “Satyam bruyat priyam bruyat, dizer a verdade que é agradável e não dizer a verdade que é desagradável, porque apesar de ser verdade, é desagradável e criará agressão, violência e choque na mente da outra pessoa”. Portanto, a veracidade é a comunicação diplomática.
7. Equanimidade
A equanimidade é ter um temperamento equilibrado, inclusive em situações extremas. É ser equilibrado no calor e no frio, na felicidade e no sofrimento. Quem vai pelo caminho com clareza, quem não se deixa influenciar pelos opostos e é imperturbável em todas as situações, é uma pessoa equânime.
8. Foco
O foco é ser estável e constante em um só ponto. Uma natureza focada em um só ponto é uma atitude mental. É uma atitude de identificação e fusão total com o objeto da contemplação.
Existe uma história no Mahabharata sobre as princesas Kaurava e Pandava aprendendo lançar flechas com o arco. Seu guru, Dronacharya, as pôs à prova para avaliar sua aprendizagem. Pôs um pássaro de argila em uma árvore e disse às estudantes: “tem que acertar no olho desse pássaro”. Chamou a cada uma de suas estudantes e lhes pediu para apontar e descrever o que estavam vendo. Cada uma disse: “posso ver a árvore, posso ver as folhas, posso ver o pássaro, posso ver as nuvens…” Dronacharya disse a cada uma; “Baixem seu arco e sua flecha”. Depois chamou Arjuna, que ao descrever o que via, disse: “vejo o olho do pássaro”. Isso é foco em um ponto. O professor deu a você uma meta, um objetivo e você tem que identificar-se com esse objetivo.
O yoga dá um objetivo e você tem que identificar-se com ele. Se ao invés, você vê tudo o que está ao redor do objetivo, então sua consciência facilmente se dissipa e se desvia. Porém quando você somente vê o olho, o objetivo, a meta e se centra nisso, então o mundo desaparece e somente ficam você e o objetivo.
Esta é também a ideia da meditação. No principio, há três coisas envolvidas na meditação: uma é você, o praticante; a outra, o processo da meditação e, a terceira, é a experiência ou o objetivo da meditação. As três se movem juntas, em sintonia. Quando o praticante se foca nas três, o processo se chama Pratyahara. Então alguma coisa cai. Você se envolve tanto na prática que perde a consciência física. A prática se converte no veículo que o conduz ao objetivo.
Você está consciente da prática e do objetivo. Isto é Dharana. Quando você alcança o objetivo e se identifica totalmente com ele, isso é Dhyana, meditação. Aqui, foco significa um estado centrado da mente.
9. Não irritabilidade
Não irritabilidade significa não incomodar-se ou irritar-se, mas cultivar a paciência e a tolerância, não somente com os outros, mas também consigo mesmo.
10. Adaptabilidade
Se você está sentado em um bote que está sendo movido por grandes ondas, você tem que mover seu corpo com o movimento do bote. Se sentar-se rígido, pode cair. Assim é como a capacidade de adaptação, ou de ajustar-se tem que ocorrer em cada situação. Tem que haver um balanço perfeito no processo.
11. Humildade
A chave para a humildade é a consideração. Quando somos capazes de desenvolver a capacidade da consideração, então se desenvolve em nosso interior uma atitude natural de respeito, que nos leva à humildade.
12. Tenacidade
A tenacidade é manter-se firme nas próprias crenças, o que quer dizer ter uma mente clara. Normalmente, nos entregamos com afinco a um condicionamento. O condicionamento pode ser uma convicção, porém é um condicionamento. Isso é o que tem que mudar, para que, através, de um estado de consciência expandida, possamos distinguir entre o apropriado e o não apropriado e manter a crença apropriada.
13. Integridade
Integridade é esforçar-se para juntar a personalidade fragmentada.
14. Nobreza
A nobreza representa um caráter grande, bom e refinado.
15. Magnanimidade
A magnanimidade é generosidade e habilidade de perdoar.
16. Caridade
A caridade significa ajudar os outros a superar suas necessidades.
17. Generosidade
A generosidade é compartilhar, fazendo os outros felizes.
18. Pureza
A pureza é uma expressão do verdadeiro eu. Se expressa através do pensamento, ação e comportamento adequados.
Estes são os 18 “itties” de Swami Sivananda que representam uma nova programação para nosso software mental. Assim que, junto com o asana e pranayama, os “itties” também devem ser cultivados.
Trabalhe um “ittie” cada mês. Converta-o num sankalpa, uma resolução. Cada manhã, diga a si mesmo: “este mês estou trabalhando a serenidade” e lembre o conceito de serenidade ao longo da rotina do dia. Ao finalizar o dia, escreva a respeito em seu diário espiritual: “quanto tempo estive sereno durante o dia? Em que momentos perdi minha serenidade?” Não se preocupe em aperfeiçoar o “ity”. Inclusive, se é capaz de dar somente um passo durante o primeiro mês, isso está bem. Depois de 18 meses, você pode repetir esse “itie” novamente. Não é uma prática que se faz somente uma vez e se põe de lado. Você deve rodá-la continuamente e, em cada ciclo, haverá uma nova revelação, uma nova compreensão, uma nova realização de quem você é e de como pode conduzir-se.
Os “itties” são a tentativa de levar nossa vida com qualidades positivas e belas. Trabalhar com os “itties” compreende cultivar hábitos positivos. Não se torne neurótico sobre a forma de mudar um hábito negativo; somente faça o esforço para cultivar hábitos positivos. Quando constrói a dimensão positiva de sua natureza, você se torna puro no seu interior, o que lhe permite entrar na experiência transcendental da vida, a vida divina. Este é o ensinamento que nos deu Swami Sivananda.