Por Gangadhara Saraswati
Sou uma professora de Yoga. Pertenço à tradição Dashnami Sannyasi, uma das dez tradições filosóficas da Índia, organizada por Adi Shankaracharya, no século VIII, a tradição Saraswati, aquela que tem como missão preservar o conhecimento ancestral dos Vedas. Meu Guru é um dos últimos representantes desta tradição, portador e guardião das práticas vernaculares e de liberdade do Yoga.
Dediquei mais da metade da minha vida a ensinar Yoga e a ensinar a abertura do 3º Olho. Este terceiro olho de que eu falo não é uma representação banal, de um ser extraterrestre, como retratado pelas ilustrações esotéricas e caricatas. Falo de um olhar além dos acontecimentos rotineiros que se apresentam à nossa frente. Este ponto do 3º Olho está relacionado aos processos de pensamento e reflexão, de conhecimento útil. Como disse o filósofo Foucault, conhecimento útil é aquele em que a existência humana está em questão e é capaz de produzir um ethos, ou seja, uma mudança no sujeito. É aquele em que o saber se desenvolve na relação entre os homens, os deuses e o mundo.
Por merecimento do suor do meu trabalho, por mais de 30 anos ensinando Yoga, vivo hoje na Serra da Moeda. Um local próximo à natureza que, por sinal, tem sido alvo de exploração das mineradoras. Vivo meu isolamento com mais dois sannyasis, um que também é guardião das práticas e outro de alma.
Vivo meu isolamento como tenho vivido nos últimos dez anos. Aqui temos silêncio para dormir e sonhar, pois como diz Mia Couto: “não há nada melhor a fazer quando nos assaltam as dores”. Aqui temos água pura e ar limpo. Tenho um bálsamo para os olhos no verde da montanha e alimento com cheiro de terra. Há mais de 20 anos não tenho televisão, levanto todos os dias antes do sol nascer, medito e oro para o bem de todos os seres. Além de prepararmos nossas aulas, retiros e seminários, preparamos nossa própria comida, limpamos a casa, lavamos roupas, cuidamos das plantas e dos animais. Não dependemos de ninguém para fazer estas coisas por nós. Para nós que vivemos aqui é difícil falar de isolamento como punição. Estar em contato com a natureza sempre foi nossa herança e uma condicionante para existirmos enquanto humanos. No entanto, a revolução industrial nos tirou este contato e acabamos por nos distanciar e por vezes até negar este legado de estar perto da terra. Hoje a maioria dos indivíduos vive nas cidades. Alguns procurando a mínima chance de sobreviver e outros se contorcendo nos espaços quadrados de seus apartamentos que no nosso imaginário nos trazem conforto.
No entanto, é preciso ativar o 3º olho e perguntar: que conforto é esse? O conforto de um sofá macio onde estender o corpo, não vale o sentir a frieza da terra quando o dia amanhece. A tela da televisão onde meus olhos ficam vidrados, não vale o brilho das estrelas. Abra o 3º olho e se pergunte: como posso ter conforto se milhares de pessoas no mundo hoje, estão espremidas num único cômodo com no máximo uma refeição por dia? Isso quando têm uma refeição.
Já viajei muito para Índia. Cheguei neste país em 1995, quando ainda não era moda fazer um curso de Yoga em um mês e voltar com o diploma de professor. Este país polêmico com a entrada do mercado multinacional e do capitalismo avançando sobre a população rural, me ensinou muito. Me ensinou que existe algo muito além da realidade material e confortável que almejamos, que nossos estados de dor e prazer não estão subordinados à realidade imediata, que é preciso olhar para as coisas e enxergar suas histórias, que podemos viver com muito menos do que imaginamos. Que estar no mundo pode nos colocar em contato direto com a experiência espiritual.
Hoje, no refúgio da nossa casa na mata da Serra, minha dor é escutar alguém falar que “morra quem tiver que morrer. A vida não pode parar”. Parados ou não, isolados ou não, já perdemos. Já perdemos a chance de olhar para nós mesmos e nos reconhecermos nos outros. Enquanto humanidade e liberdade, eu sou o outro. O vírus veio para nos dizer que já perdemos a chance de realizar a não violência, a verdade, a honestidade numa sociedade competitiva e destruidora dos valores elevados.
Como pensar o que será o amanhã? Só nos resta a humildade diante deste vírus grandioso que nos traz a oportunidade de vermos que estamos interconectados, de que vamos pagar caro pela nossa desigualdade social , de olharmos para nós mesmos, isso se não nos perdermos nos “egobooks” , procurando auto projeção.
Observo como que de um dia para outro milhares de professores de Yoga foram para as redes oferecer suas aulas virtuais. Entendo que precisam sobreviver, inclusive, eu também preciso sobreviver, mas não é só isso. Virem a chave!
Já estamos no 2º capítulo do Yoga. O que mais temos que oferecer agora é a abertura do 3º olho em vez de um simples relax da musculatura e um pouco mais de oxigênio no cérebro e nos pulmões. Precisamos ampliar a visão e criar oportunidades onde as pessoas consigam se reconhecer como portadores de luz e sombra. Se a sombra tiver que sair, que saia para dar espaço à luz.
Abrir o 3º olho para ver o Yoga como uma prática de libertação de uma sociedade condicionada, normatizada, e que pode nos levar à nossa própria verdade. Abrir o 3º olho para levar os indivíduos a sentirem que somos seres de relação e interconectados, o que o vírus veio dolorosamente nos ensinar.
Abrir o 3º olho para enxergar a discriminação e opressão das mulheres, para ver que as abelhas estão morrendo, para enxergarmos o genocídio dos povos indígenas, a medicalização da vida, a devastação das florestas, a discriminação dos homo afetivos por trás de uma suposta lei de aceitação.
Abrir o 3º olho para enxergar que o vírus é compassivo com as crianças que são seres puros e inocentes e nelas reside nossa esperança enquanto humanidade.
Sempre fui discriminada por ser uma simples professora de Yoga, porque a sociedade não sabe o que é Yoga. Enquanto guardiã de uma cultura milenar tenho o dever ético de proteger esta prática e abrir nosso 3º olho para enxergarmos de perto o que realmente estamos querendo e fazendo com nosso viver . Será que queremos abrir o 3º olho ou simplesmente nos afundarmos numa crença cega de salve-se quem puder?
Gangadhara Saraswati é professora de Yoga há mais de 30 anos. Psicóloga, pedagoga, diretora do Satyananda Yoga Center/Brasil e fundadora da Casa do Guru, um espaço na Serra da Moeda, Minas Gerais, voltado para vivências de educação, saúde, arte e ecologia coordenadas com o Yoga.
Possui mestrado em educação e saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e é membro do Yoga Vidya Council da Bihar School of Yoga/Ìndia.
Foi iniciada na tradição Dashnami por Swami Niranjanananda Saraswati. Bihar School of Yoga/Índia.
Faz a rota Brasil-Índia desde 1994.